João, Evangelho de

1. Autoria e datação. O primeiro que relacionou
o Quarto Evangelho a João, o filho de
Zebedeu, parece ter sido Irineu (Adv. Haer, 3,1,1),
citado por Eusébio (HE 5,8,4), o qual menciona
Policarpo como fonte de sua opinião. Sem dúvida,
o testamento reveste-se de certa importância,
mas não deixa de apresentar inconvenientes. As-
João, Evangelho de
Um dos primeiros fragmentos do evangelho
de João, por volta do ano 100 d.C.
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sim, é estranho que outra literatura relacionada
com Éfeso (a Epístola de Inácio aos Efésios, por
exemplo) omita a suposta relação entre o apóstolo
João e esta cidade. Também é possível que
Irineu tenha-se confundido quanto à notícia que
recebeu de Policarpo, já que destaca que Papias
foi ouvinte de João e companheiro de Policarpo
(Adv. Haer, 5,33,4). No entanto, conforme o testemunho
de Eusébio (HE 3,93,33), Papias foi, na
realidade, ouvinte de João, o presbítero — que
ainda vivia nos tempos de Papias (HE 3.39.4) —
e não do apóstolo. Fica, pois, a possibilidade de
que esse João foi o mesmo ao qual Policarpo se
referiu.
Outras referências a uma autoria de João, o
apóstolo, em fontes cristãs são muito tardias ou
lendárias para serem questionadas, seja o caso de
Clemente de Alexandria, transmitido por Eusébio
(HE 6,14,17) ou o do Cânon de Muratori (c. 180-
200). É certo que a tradição existia em meados
do séc. II, mas não parece de todo concludente.
Quanto à evidência interna, o evangelho reúne
referências que podemos dividir nas relativas
à redação e nas relacionadas com o discípulo amado
(13,23; 19,26-27; 20,1-10 e 21,7 e 20-4; possivelmente
18,15-16; 19,34-37 e talvez 1,35-36).
As notícias recolhidas em 21,20 e 21,24 poderiam
identificar o redator inicial com o discípulo
amado ou talvez com a fonte principal das tradições
recolhidas nele, porém, uma vez mais, fica
obscuro se esta é uma referência a João, o apóstolo.
Em nenhum momento o evangelho distingue
o discípulo amado por nome nem tampouco
o apóstolo João. E se na Última Ceia só estiveram
presentes os Doze, obviamente o discípulo
amado teria de ser um deles; tal dado, contudo,
ainda não é seguro. Apesar de tudo, não se pode
negar, de maneira dogmática, a possibilidade de
o discípulo amado ser João, o apóstolo, e até mesmo
existem alguns argumentos que favorecem
essa possibilidade. Pode-se resumi-los da seguinte
maneira:
1. A descrição do ministério galileu tem uma
enorme importância em João, a ponto de a pró-
João, Evangelho de
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pria palavra “Galiléia” aparecer mais vezes neste
evangelho do que nos outros (ver especialmente:
7,1-9).
2. Cafarnaum recebe uma ênfase muito especial
(2,12; 4,12; 6,15), em contraste com o que os
outros evangelhos designam o lugar de origem
de Jesus (Mt 13,54; Lc 4,16). A própria sinagoga
de Cafarnaum é mencionada mais vezes neste do
que nos outros evangelhos.
3. O evangelho de João refere-se também ao
ministério de Jesus na Samaria (c.4), o que é natural,
levando-se em conta a relação de João, o de
Zebedeu, com a evangelização judeu-cristã da
Samaria (At 8,14-17).
4. João fazia parte do grupo de três (Pedro,
Tiago e João) mais íntimo de Jesus. É, pois, um
tanto estranho que um discípulo tão próximo a
Jesus, como o discípulo amado — e não se tratando
de João —, não apareça sequer mencionado
em outras fontes.
5. As descrições da Jerusalém anterior ao ano
70 d.C. encaixam-se com o que sabemos da permanência
de João nessa cidade, depois de Pentecostes.
De fato, os dados fornecidos por At 1,13;
8,25 e por Paulo (Gl 2,1-10) indicam que João
estava na cidade antes do ano 50 d.C.
6. João é um dos dirigentes judeu-cristãos que
teve contato com a diáspora, assim como Pedro e
Tiago (Tg 1,1; 1Pd 1,1; Jo 7,35 1Cor 9,5), o que
se enquadraria com algumas das notícias contidas
em fontes cristãs posteriores e em relação ao
autor do Quarto Evangelho.
7. O evangelho de João procede de uma testemunha
que se apresenta como ocular.
8. O vocabulário e o estilo do Quarto Evangelho
destacam uma pessoa cuja primeira língua era
o aramaico e que escrevia em grego correto, porém
cheio de aramaísmo.
9. O pano de fundo social de João, o de
Zebedeu, encaixa-se perfeitamente com o que se
esperaria de um “conhecido do Sumo Sacerdote”
(Jo 18,15). De fato, a mãe de João era uma das
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mulheres que serviam Jesus “com seus bens” (Lc
8,3), como a mulher de Cuza, administrador das
finanças de Herodes. Igualmente sabemos que
contava com assalariados a seu cargo (Mc 1,20).
Talvez alguns membros da aristocracia sacerdotal
o vissem com menosprezo por ser um leigo
(At 4,13), mas o personagem estava longe de ser
medíocre, a julgar pela maneira tão rápida pela
qual se tornou um dos primeiros dirigentes da
comunidade hierosolimita, logo depois de Pedro
(Gl 2,9; At 1,13; 3,1; 8,14 etc.).
Não sendo, pois, João, o de Zebedeu, o autor
do evangelho (e pensamos que a evidência a favor
dessa possibilidade não é pequena), teríamos
de ligá-lo com algum discípulo mais próximo a
Jesus (como os mencionados em At 1,21ss., por
exemplo) e que contava com uma considerável
importância dentro das comunidades judeu-cristãs
da Palestina.
Em relação à datação do quarto evangelho, não
se duvida porque o consenso tem sido quase unânime
nas últimas décadas. Geralmente, os críticos
conservadores datavam a obra em torno do
final do séc. I ou início do séc. II, enquanto os
radicais — como Baur — situavam-na por volta
de 170 d.C. Um dos argumentos utilizados como
justificativa dessa postura era ler em Jo 5,43 uma
referência à rebelião de Bar Kojba. O fator
determinante para refutar essa datação tão tardia
foi o descobrimento, no Egito, do p 52, pertencente
à última década do século I ou à primeira
do século II, onde está escrito um fragmento de
João. Isso situa a data da relação, no máximo, em
torno de 90-100 d.C. Contudo, existem, em juízo
de vários estudiosos, razões consideráveis para
datar o evangelho em um período anterior. No
ponto de partida dessa revisão da data, devem estar
os estudos de C. H. Dodd sobre este evangelho.
Este autor seguiu a corrente que data a obra entre
90 e 100, atribuindo-a a um autor estabelecido
em Éfeso; reconheceu, sem dúvida, que o contexto
do evangelho se refere a condições “presentes
na Judéia antes do ano 70 d.C., e não mais
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tarde nem em outro lugar”. De fato, a obra é descrita
como “dificilmente inteligível” fora de um
contexto puramente judeu anterior à destruição
do Templo e até mesmo à rebelião de 66 d.C.
Apesar dessas conclusões, C. H. Dodd sustentou
a opinião em voga, alegando que Jo 4,53 era uma
referência à missão pagã e que o testemunho de
João recordava a situação em Éfeso em At 18,24-
19,7. Ambas as teses são de difícil defesa para
sustentar uma data tardia, já que a missão entre
os pagãos foi anterior a 66 d.C., e At 18 e 19 narram
acontecimentos também anteriores a 66 d.C.
O certo é que atualmente se reconhece a existência
de razões muito sólidas para defender uma
datação da redação do evangelho anterior a 70
d.C. São elas: 1. A cristologia muito primitiva (ver
Mensagem). 2. O pano de fundo que, como já
advertiu Dodd, só se encaixa no mundo judeupalestino
anterior a 70 d.C. 3. A existência de
medidas de pressão contra os cristãos antes do
ano 70 d.C.: as referências contidas em Lc 4,29;
At 7,58 e 13,50 mostram que não é necessário
mencionar Jo 9,34ss.; 16,2 para episódios posteriores
à destruição do Templo. 4. A ausência de
referências aos pagãos. 5. A importância dos
saduceus no evangelho. 6. A ausência de referências
à destruição do templo. 7. A anterioridade ao
ano 70 d.C. dos detalhes topográficos rigorosamente
exatos.
2. Estrutura e Mensagem. O propósito do
evangelho de João é claramente determinado em
20,31: levar a todos os povos a fé em Jesus como
messias e Filho de Deus, a fim de que, por essa
fé, obtenham a vida. O evangelho está dividido
em duas partes principais, precedidas por um prólogo
(1,1-18) e seguidas por um epílogo (c. 21).
A primeira parte (1,19-12,50) ou o “Livro dos
Sinais”, segundo C. H. Dodd, apresenta uma seleção
dos milagres — sinais ou signos — de Jesus.
A segunda parte (13,1-20,31), também denominada
“Livro da Paixão” (Dodd) ou da Glória
(Brown), inicia-se com a Última Ceia e narra
a paixão, morte e ressurreição de Jesus.
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Três são os aspectos especialmente centrais na
mensagem de João. Em primeiro lugar, a revelação
de Deus através de seu Filho Jesus (1,18).
Evidentemente, a cristologia desse evangelho é
muito primitiva e assim Jesus aparece como “profeta
e rei” (6,14ss.); “profeta e messias” (7,40-
42); “profeta” (4,19; 9,17); “messias” (4,25); “Filho
do homem” (5,27) e “Mestre da parte de Deus”
(3,2). Sem súvida, do mesmo modo que *Q, onde
Jesus se refere a si mesmo como a *Sabedoria,
neste evangelho enfatiza-se que o Filho é, pela
filiação, igual a Deus (Jo 5,18) e Deus (1,1; 20,28).
De fato, o Logos joanino de Jo 1,1 não é senão a
tradução grega do termo aramaico *Memrá, uma
circunlocução para referir-se a YHVH no Targum.
É o próprio Deus que se aproxima, revela e salva
em Jesus, já que este é o *“Eu sou” que apareceu
a Moisés (Êx 3,14; Jo 8,24; 8,48-58). Isso se evidencia,
por exemplo, nas prerrogativas do Filho
em julgar (5,22,27,30; 8,16.26; 9,39; 12,47-48),
ressuscitar os mortos (5,21,25-26.28-29; 6,27;
35,39-40,50-51.54-58; 10,28; 11,25-26) e trabalhar
no *sábado (5,9-18; 7,21-23).
O segundo aspecto essencial da mensagem
joanina é que em Jesus não somente vemos Deus
revelado, mas também encontramos a salvação.
Todo aquele que crê em Jesus alcança a vida eterna
(3,16), tem a salvação e passa da morte à vida
(5,24). E a fé é uma condição tão essencial que os
sinais pretendem, fundamentalmente, levar as
pessoas a uma fé que as salve. De fato, crer em
Jesus é a única “obra” que se espera que o ser
humano realize para obter a salvação (Jo 6,29).
Aceitar ou não Jesus como Filho de Deus, como
“Eu sou”, como messias, tem efeitos contudentes
e imediatos. A resposta positiva — uma experiência
que Jesus denomina “novo nascimento”
(3,1ss.) — conduz à vida eterna (3,15) e a ser convertido
em filho de Deus (1,12); a negativa leva à
condenação (3,19) e ao castigo divino (3,36). Partindo-
se dessas posturas existenciais, dessa separação
entre incrédulos e fiéis, pode-se entender o
terceiro aspecto essencial da mensagem joanina:
a criação de uma nova comunidade espiritual em
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torno de Jesus e sob a direção do *Espírito Santo,
o Consolador. Só se pode chegar a Deus por um
caminho, o único: Jesus (14,6). Só se pode dar
frutos unido à videira verdadeira: Jesus (Jo
15,1ss.). Todos os que assim se unem a Jesus serão
perseguidos por um mundo hostil (15,18ss.),
todavia serão também objeto da ação do Espírito
Santo (16,5ss.), viverão em uma alegria que humanamente
não se pode entender (16,17ss.) e
vencerão o mundo como Jesus (16,25ss.). Neles
também se manifestará um amor semelhante ao
de Jesus (Jo 13,34-35), o Filho que voltará, no
final dos tempos, para recolher os seus e levá-los
à casa de seu Pai (Jo 14,1ss.). É lógico que essa
cosmovisão se expresse nesse conjunto de oposições
que não são exclusivas de João, mas que são
tão explícitas nesse evangelho: luz-trevas, mundo-
discípulos, Cristo-Satanás etc. O ser humano
vê-se dividido diante de sua realidade — a de que
vive nas trevas — e a possibilidade de obter a
vida eterna pela fé em Jesus (5,24). O que aceita
a segunda opção não se baseia em especulações
nem em uma fé cega, porém em fatos que aconteceram
na história e dos quais existiram testemunhas
oculares (19,35ss.; 21,24). Ao crer em Jesus,
descobre-se nele — que na *Ressurreição demonstrou
a veracidade de suas pretensões — seu
Senhor e seu Deus (Jo 20,28) e obtém-se, já nesta
vida, a vida eterna (20,31), integrando-se numa
comunidade assistida pelo Espírito Santo e que
espera a segunda vinda de seu Salvador (Jo
14,1ss.; 21,22ss.).
C. H. Dodd, Interpretation...; Idem, Historical
tradition...; R. E. Brown, Evangelio según san Juan, 2 vols.,
Madri 1975; Idem, La comunidad del discípulo amado,
Salamanca 1983; F. Manns, L’Evangile de Jean, Jerusalém
1991; J. A. T. Robinson, Redating...; Idem, The Priority...;
C. Vidal Manzanares, El judeo-cristianismo...; Idem, El
Primer Evangelio...; R. Bultmann, The Gospel of John, Filadélfia
1971; C. K. Barrett, The Gospel, according to St.
John, Filadélfia, 1978; R. Schnackenburg, The Gospel
According to St. John, 3 vols., Nova York 1980-1982; F. F.
Bruce, The Gospel of John, Grand Rapids 1983; G. R.
Beasley-Murray, John, Waco 1987; J. Guillet, Jesucristo en
el Evangelio de Juan, Estella 51990; A. Juabert, El Evangelio
según san Juan, Estella 121995.